Já estava anoitecendo quando por fim chegamos
à Sunset Valley.
Eu conhecia aquela cidade como a palma da minha mão, e
tenho certeza que ganharia um ótimo salário sendo guia turística.
Lembro-me de correr livremente por essas apagadas ruas.
Era uma época tão inocente, onde tinha conhecimento algum sobre o que era “mal”.
Continuamos adentrando as ruas em meio a curvas, quando
uma rústica e modesta construção chamou minha atenção. Um sorriso imediato se
formou em minha face, só que em instantes, conforme o carro fora se afastando,
ele fora diminuindo.
—Não moramos mais ali? —Perguntei.
—Não Amélia. Sinto
muito.
O carro por fim parou em frente no que ele denominou de
lar. Na certa a construção mais moderna que devo ter visto no meu curto período
chamado vida. Posso lhes jurar que por um instante, cheguei à hipótese de que
aquilo fosse de fato, bem maior que o sanatório Isobel Hudson.
Rapidamente, ele retirou as malas do carro, e em meio a luzes externas,
adentramos a casa.
Depois de
colocar as malas no hall, ele parou ao meu lado cruzando os braços, e junto a
mim, observou o cenário em questão.
—O que acha?
—Perguntou ainda imóvel.
—Vejo que
conseguiu subir bastante na vida. —Desviei meu olhar para o curioso enfeite
sobre a mesinha de canto. Passei meus dedos delicadamente sobre o objeto e logo
em seguida, voltei minha atenção a ele. —Irei me acostumar.
De longe, avistei a extravagante figura de preto descendo as escadas. Conforme fora se aproximando, o cheiro do forte perfume aumentava drasticamente, e isso quase me causou uma incomoda dor de cabeça. Ela abriu os braços, e receptiva, disse meu nome em meio à alegria.
—Amélia! Achei
que não nos presentearia com sua presença querida. —Esta era Catarina,
definitivamente um dos meus piores pesadelos desde criança. Eu a odiava
mortalmente, e dividir um teto com ela seria algo que eu não gostaria de
repetir novamente.
Catarina avançou pronta para me dar um abraço, desviei o olhar para meu pai que ainda estava observando a cena, e assim, encenando no meu estilo, retribui.
Um toque suave
e agudo soou por entres os cômodos da casa, na certa seria um telefone. Meu pai
saiu de sua posição, caminhando em direção a outro aposento.
Rapidamente o
abraço foi desfeito. Catarina deu questão de dois passos para trás, disposta a
ter uma ampla visão do que estava diante de seus olhos.
—Aparentemente? Bem melhor do que a sua. —Ela deu uma curta pausa, mirando constantemente meu traje. —Mas espero que as coisas entre nós não tomem o mesmo rumo como há sete anos. Tenho certeza que possamos ser ótimas amigas.
—Não...
—Respondi calmamente. —Nós não podemos ser amigas, Catarina. Porque afinal, eu
não quero. E, além disso, você não passa de uma vadia que engana meu pai.
—Catarina se aproximou. A raiva estava translúcida em seus olhos.
—Escolha
minuciosamente suas palavras, Pirralha.
É preciso somente um estalar de dedos para te colocar de volta naquele
hospício. —Sua expressão voltou ao normal assim que pronunciou a última
palavra, recuando para sua posição original. Sentia que havia ganhado a
primeira batalha, e isso a confortava.
Meu pai retornou cheio de devaneios. Parou ao lado de Catarina, fitando nossas expressões faciais, e então sorriu.
—O que estavam
conversando?
—Nada de mais.
Eu só estava sendo Gentil. —Respondi. Catarina deu um sorriso forçado.
—Amélia, tenho
certeza que está doida para ver seu irmão. Ele deve estar no quarto. Segunda
porta á direita.
Papai me fitou
sorrindo, decididamente considerou a maneira como Catarina e eu encenávamos,
algo realmente aprovado. E os deixando, subi as escadas em direção ao segundo
andar.
De leve, bati
na porta. De principio, parecia não haver ninguém no quarto, e cheguei a
considerar a hipótese de ter sido “passada
pra trás” por Catarina.
Mas depois de insistir mais uma vez, a grossa voz respondeu parcialmente
irritada.
—Vá embora!
Contraí a
porta para mim mesma, e lentamente a abri.
Bruce estava
sentado na cadeira próxima à escrivaninha, não deslocava sua atenção perante o
monitor do computador. Ele virou-se sem paciência alguma para minha direção
assim que ouviu o rugir da madeira. Achava que poderia ser Papai e outro sermão
de duas horas.
Sua expressão
mudou assim que me viu. A aparência zangada deu espaço para uma serena e
gentil, mas ao mesmo tempo um tanto quanto confusa.
—Amélia?
—Estava
esperando outra pessoa? Não, porque se estiver, posso voltar em outra ocasião.
—Brinquei.
Ele levantou-se e de imediato me
abraçou. Essa com toda certeza, foi um dos momentos em que eu, mesmo se
quisesse, não conseguiria descrever. Meus braços rodeavam seu tronco,
apertando-o com certa força. Bruce estava de fato, diferente. Não se comparava
ao garotinho que adorava assistir desenhos aos sábados de manhã. Ele por fim,
me soltou.
—Não acredito no que vejo. —Ele exclamou
ainda chocado. —Quando você chegou?
—Há uns 15 minutos praticamente. Temos
tanta coisa para conversar.
Ele me puxou, fazendo-me sentar na
beirada da cama. Logo em seguida, puxou a mesma cadeira que há segundos atrás
utilizava.
—Como é bom te ver, Tampinha. Senti
saudades.
—Também senti Bruce. —Sorri. —Você não
sabe o quanto esperei por esse momento.
—Por que não respondeu minhas cartas?
—Sua expressão demonstrava tristeza e desapontamento.
—Cartas? —Perguntei confusa. —Não recebi
carta nenhuma.
Entrei em sua mente, e ouvi uma por uma, as várias
lembranças que Bruce tinha no momento. Aniversários, Natais, Dias das Bruxas,
ele havia escrito cartas em todas as comemorações possíveis, sempre descrevendo
as mesmas coisas. Mas conforme o passar do tempo, não obtendo nenhuma resposta
de minha parte, desistiu. Parei por um instante e novamente senti as lágrimas
chegando. Com esforço, as segurei e firmemente o encarei.
—Internato?
—É, de onde você acabou de voltar. Sabe, de Twinbrook,
aquele só para garotas. Ou por acaso se esqueceu? —Bruce respondeu em um tom de
deboche inédito para mim. Ele não estava mentindo, eu podia sentir.
—Não! —Exclamei. —Não esqueci. —Bruce estranhou meu
“esquecimento repentino” mas o ignorou. Deixei o estranho fato de lado,
seguindo a mesma tática de Bruce, e passamos a conversar.
Perdemos a
noção do tempo. Bruce me contou sobre como ia a vida, a escola, e o clima em
casa. Teve certas coisas que fiquei entristecida por ouvir, como o fato dos
constantes desentendimentos que tinha com Papai. Mas fiquei feliz em saber, que
tirando isso, ele tinha uma vida feliz.
A porta rangeu
novamente. Bruce revirou os olhos de imediato. Meu Pai adentrou o cômodo
quarto, sorriu para mim.
—O jantar está
pronto. Desçam para comer. —Ele disse calmamente.
—Pai? Na
verdade... —Dei uma pausa. —Não estou com fome, só cansada. Tive um dia cheio
hoje. —Ele me olhou desapontado. —Acho que poderia me mostrar o quarto agora,
não?
Me despedi de
Bruce, e seguindo meu pai, fui até meu novo quarto. Amplo, espaçoso e vagamente
desvitalizado – O que em parte, me lembrou muito o Sanatório.
Reparei nos
bichinhos de pelúcia mais ao canto. Reconheci alguns – de minha infância,
rasurados pelo tempo – e outros eram novos. Olhei para meu pai, ele pareceu não
notar a careta que fiz.
—Quantos anos
acha que tenho?
—Você está
diferente, Amélia. Não sabia se seus gostos haviam mudado tanto assim. —Ele
suspirou. —Queria te fazer uma surpresa.
—E conseguiu.
—Abaixei para pegar um dos ursinhos. —Por que mentiu?
Ele me
observou. Sua expressão estava confusa. Perguntava-se o porquê daquela
pergunta.
—Você sabe.
Sobre meu paradeiro. Bruce pensa que estive esse tempo todo em um internato.
Por quê?
Ele passou a
suar frio.
—Estávamos
passando por uma época difícil, sua mãe... —Gaguejou. —E teve a sua crise, tudo
ao mesmo tempo. Eu não queria que ele sofresse mais ainda. —Ele tentou
argumentar.
—E eu? —O
interrompi. —Eu não sofri?
Ele me fitou
apreensivo.
—Você tem noção...
De quantas noites eu chorei em silêncio no escuro, pedindo para não estar mais
sozinha?
—Boa noite, Amélia.